segunda-feira, 11 de outubro de 2021
"Yesterday", eu me vi nos "Olhos de Capitu": cinema, memória, história, arte, cultura, literatura e filosofia
O vídeo acima, Yesterday, é trailer de um belo filme [comédia romântica] que pode ser visto na Amazon Prime, e que traz referência a um dos grandes sucessos da banda inglesa The Beatles e que assisti recentemente, por causa de indicação indireta no Twitter.
O longa produzido em 2019, mas veiculado no streaming em 2021, conta a história [sem spoilers] de um cantor e compositor frustrado, que não consegue emplacar um sucesso na carreira, até que acontece um misterioso blecaute global e ele se acidenta, sendo atropelado em sua bicicleta. Dali em diante, somente ele relembra o sucessos e a existência da banda The Beatles, vindo a se tornar uma celebridade. Até aí nada de mais, já que constam esses dados no "trailer" oficial do serviço de "streaming".
Porém, minha memória cinematográfica e literária, logo viu algumas semelhanças [embora o final seja diferente em ambos] com uma produção gaúcha de 2007, do curta chamado "Olhos de Capitu", integrante da série "Histórias Curtas", produzida pela RBSTV, de Porto legre, Rio Grande do Sul, Brasil. Vide curta logo abaixo:
No referido curta, um jovem escritor, durante um café da manhã com a esposa, demonstra a insatisfação com seus escritos sendo recursados pelas editoras, comentando que se fosse um Machado de Assis e o livro Dom Casmurro, poderia também ser recusado pelos editores contemporâneos. Para seu espanto, sua esposa indica nunca ter ouvido o nome do autor nem do livro. Então, ele procura sua coleção de capa verde do "Bruxo do Cosme Velho" em sua biblioteca pessoal e nada. Vai na casa da mãe e idem. Chegar a ir numa livraria conceituada e nem os atendentes conhecem autor e obras. Indignado e perplexo, descobre que nem no "Google" há referências ao grande escritor brasileiro que - como em "Yesterday" com os Beatles -, parece ter deixado de existir e somente ele lembra dos grandes textos de Machado de Assis.
A partir daí, em relação ao final, as duas histórias, uma longa e outra curta, possuem finais diferentes.
Entretanto, essa semelhança entre uma e outra me fez lembrar duas situações também distintas:
A primeira, logo no início do século XX, quando dois grandes escritores, cada qual em sua área, um na Literatura e outro na Psiquiatria, elaboraram textos contundentes sobre olhares diferentes de um mesmo tema: a memória. Marcel Proust e seu clássico dos clássico, "Em Busca do Tempo Perdido", com 7 volumes, mais de 3 mil páginas, em que trata de como a memória funciona como uma espécie de máquina do tempo, preservando recordações distantes que ficam armazenadas na mente e despertadas por certas sensações, como olfato, tato, audição, visão... O episódio em que narra um café com madeleine [espécie de doce], que remete imediatamente às memórias de infância na casa da avó do narrador do romance, que também traz memórias autobiográficas do escritor. Já Sigmund Freud, está desenvolvendo na mesma época seus estudos sobre as memórias reprimidas, recalcadas no que ele denominará de Inconsciente e que fazem parte da identidade e personalidade das pessoas, e que podem ser ativadas através de sonhos e interpretadas através da simbologia que estes podem conter, como sonhar com cobra, que traz um elemento sexual reprimido etc. O detalhe é que, segundo consta, embora tenham sido contemporâneos e vivido na Europa efervescente do início do século XX, nenhum leu os textos do outro para se inspiram nas ideias alheias. Há indicações que sequer tenham se conhecido pessoalmente naqueles tempos.
Já o segundo incidente, refere-se a dois livros: Max e os Felinos [1981], do escritor brasileiro, de origem judaica, Moacyr Scliar, que narra a história de um náufrago de origem judaica e seu encontro dentro de um bote salva-vidas com um tigre, obra que teria servido de inspiração para "Life of Pi" [As Aventuras de Pi], de Yann Martel, escritor canadense, que teve seu livro de 2001 adaptado para o cinema e recebido o Oscar de melhor filme, onde conta a história do filho de um dono de zoológico na Índia, que se muda para o Canadá, mas que no meio da viagem encontra uma tempestade e sobre um naufrágio, descobrindo um tigre dentro de um barco. Lembra algo? Vejam AQUI notícia sobre essa polêmica.
Entre o consciente individual e o inconsciente coletivo, de pessoas pensando as mesmas coisas sem terem nunca se lido ou convivido e os que se inspiram em ideias alheias para supostamente melhorá-las, há mais coisas entre o céu e a terra, que a nossa vã filosofia possa vislumbrar, já disse Shakespeare, séculos atrás.
A filosofia muitas vezes destaca ideias que se repetem com o passar do tempo, sendo reinventádas, reinterpretadas, readaptadas aos novos tempos. Basta lembra que "O mito ou alegoria da Caverna", de Platão, está presente na civilização ocidental desde sua criação há quase 2.500 anos. A própria "Divina Comédia", de Dante Alighieri, lembra em parte a escuridão da caverna da ignorãncia ou Inferno medieval dos pagãos, segundo Dante, rumo ao purgatório e depois ao Paraíso da luz da sabedoria, a luz natural do sol, diria Platão, que poderá cegar àquele, diante de tanta informação. Isso está presente em "realities shows", em que pessoas ficam confinadas, perdendo a noção de tempo e do que acomntece no mundo exterior, assim como quem ficou por tanto tempo em confinamento social em função da pandemia, em sua caverna, vendo as sombras daquilo que as telas permitiam ver, sem contato com a realidade exterior.
Assim, voltando aos longa e curta mencionados no início desta postagem, ambos trazem como argumento principal justamente a questão da memória coletiva e da importância da arte e da cultura no cotidiano da sociedade. No longa o desaparecimento dos Beatles, Coca-Cola, Harry Potter e outros faz refletir sobre o imaginário na identidade social; já no curta, a mesma coisa com o apagamento do maior escritor brasileiro de todos os tempos, caso ocorresse. Quantas citações, quantas referências no dia a dia estão presentes, embora o autor não esteja mais entre nós, mas sua obra é imortal, desde que cultuada nesse ritual de leitura, releitura, ressignificação pelos novos leitores e as novas gerações. Assim ocorre na música, no cinema, na história e na própria filosofia.
"Yesterday", eu me vi nos "Olhos de Capitu", e vi o mundo com outros olhos, caso Capitu, Dom Casmurro, Beatles, Harry Potter e outros tantos ícones artísticos e culturais não existissem mais. São todos frutos de nossa bagagem sociocultural e de nossa memória sentimental.
Observação:
Esta postagem é de autoria de José Antonio Klaes Roig, professor, escritor e poeta, além de editor do blog Educa Tube Brasil. http://educa-tube.blogspot.com
José Antonio Klaes Roig ou Zé Roig, como gosta de ser chamado, possui o Prêmio de Professor Transformador [2020] e seu blog Educa Tube Brasil, o Prêmio de um dos melhores blogues educacionais do Brasil [2020], conforme selos estampados na coluna à direta desta postagem.
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