terça-feira, 5 de janeiro de 2021

"Aos que virão depois de nós" (eu vivo em tempos sombrios): poema de Bertold Brecht, terrivelmente atual, crítico e visceral




O vídeo acima, Aos que virão depois de nós, poema de Bertold Brecht que faz parte de "Gestus - Poemas de Brecht", gravados pela Cia. do Porão (Núcleo 33 de teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, São Paulo, Brasil) para apresentação do espetáculo "A Padaria", com apresentação/interpretação da atriz Léia Nogueira.
Gestus, no conceito do teatro brechtiano significa justamente "apresentação", "mostragem" através do gestual.
Bertold Brecht (1898-1956) foi um dos maiores poetas e dramaturgos do teatro alemão e universal do século XX e suas peças, poemas e falas povoam o imaginário popular. Sua influência no teatro contemporâneo é notória, "tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955. Ao final dos anos 1920 Brecht torna-se marxista, vivendo o intenso período das mobilizações da República de Weimar, desenvolvendo o seu teatro épico. Sua praxis é uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator e Vsevolod Emilevitch Meyerhold, do conceito de estranhamento do jornalista russo Viktor Chklovski, do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, entre os anos 1917-1926. Seu trabalho como artista concentrou-se na crítica artística ao desenvolvimento das relações humanas no sistema capitalista". (Fonte: Wikipédia)
O fragmento "Aos que virão depois de nós", que poderá ser lido a seguir, traz toda a dramaticidade, criticidade, veracidade da obra de Brecht e ecoa até hoje, em pleno século XXI, parecendo em alguns momentos ser uma descrição do cotidiano destes tempos pandêmicos e quase distópicos:

"Eu vivo em tempos sombrios. Uma linguagem sem malícia, é sinal de estupidez. Uma testa sem rugas, é sinal de indiferença. Que tempos são esses? Onde falar sobre flores é quase um crime, porque significa silenciar sobre tanta injustiça. É verdade, eu ainda ganho bastante para viver. Mas acreditem, é por acaso. Nada do que eu faço dá me o direito de comer quando tenho fome. Dizem-me: Come e bebe, fica feliz por teres o que tens. Mas como é que posso comer e beber se a comida que eu como, eu tiro de quem tem fome. Se o copo de água que eu bebo, faz falta a quem tem sede. Mas apesar disso, eu continuo comendo e bebendo. Eu vim para a cidade no tempo da desordem, quando a fome reinava. Eu vim para o convívio dos homens no tempo da revolta, e me revoltei ao lado deles. Assim se passou o tempo que me foi dado viver sobre a terra. Eu comi o meu pão no meio das batalhas. Deitei-me entre os assassinos para dormir. Fiz amor sem muita atenção e não tive paciência com a natureza. Assim se passou o tempo que me foi dado viver sobre a terra. Vocês, que vão emergir das ondas em que nós perecemos, pensem. Quando falarem das nossas fraquezas, nos tempos sombrios que vocês tiveram a sorte de escapar. Nós existíamos, através da luta de classes. Mudando mais seguidamente de países de que sapatos. Desesperados. Infelizmente, nós que queríamos preparar o caminho para a amizade, não pudemos ser nos mesmos bons amigos. Mas vocês, quando chegar um tempo que o homem seja amigo do homem, pensem em nós com um pouco de compreensão."

3 comentários:

  1. Estou encantada com essa Obra!
    Um misto de passado histórico, remetendo ao contemporâneo, que também estamos escrevendo um capítulo dessa nova história para deixarmos para aqueles que chegarem após nós. O poema dialoga com o nossa realidade. É uma existência com muitas surpresas e desafios.
    Realmente, maravilhoso!

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    1. Oi, Nilzete. Todo o gênio tem essa sensibilidade de captar, além das questões conjunturais, as estruturais de uma sociedade, e no caso de Brecht, ele sempre denunciou essas estruturas que se sucedem, desde as pirâmides, por isso seu texto é tem universal e atemporal. Um abraço,

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