quarta-feira, 24 de junho de 2020
"A gente se acostuma... Eu sei..., mas não devia": texto atualíssimo de Marina Colasanti na interpretação de Antonio Abujamra
O vídeo acima, A gente se acostuma..., é conteúdo de propriedade da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura) que encontrei no YouTube e trata-se do texto "Eu sei, mas não devia" de Marina Colasanti recitado por Antônio Abujamra no programa Provocações e serve como fonte de reflexão nestes tempos de coronavírus e confinamento social, para pensar a condição humana antes, durante e após a pandemia. Da importante da arte e da cultura neste momento para manter nossa humanidade e preserva a sanidade mental.
Material para discutir a banalização do mal, por conta de atos violentos e de intolerância, sobre o racismo, o fascismo, o ódio, o preconceito e a discriminação; sobre o feminicídio, a xenofobia, a homofobia, a misoginia, o determinismo, o terraplanismo e outras questões que pensávamos estar superadas neste século XXI. Enfim, um pequeno texto para grandes possibilidades de interação.
A gente se acostuma com notícias sobre aquecimento global, mudanças climáticas, crimes ambientais, corrupção, cinismo acima de tudo, e hipocrisia para cima de todos, mas não devia.
Enfim, o pequeno vídeo como grandes possibilidade de utilização em diversas áreas do conhecimento.
Segue abaixo a transcrição do mesmo:
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
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Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirEu sou apaixonada por este texto!
ResponderExcluirConcordo com você, José Antonio, ele é atualíssimo, lindo e traz uma mensagem reflexiva profunda.
Eu explorei a mensagem do referido texto para o momento de acolhimento e reflexão, em uma Oficina Pedagógica que ministrei em janeiro deste ano.
Os participantes, ficaram impactados com essa mensagem.
Me remeti lá no mês de janeiro, agora!
Muito obrigada!
Abraço.
Oi, Nilzete, este texto é atualíssimo e universal. Um daqueles que nos faz refletir sobre a condição humana. Um abraço,
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